Hoje, dia 22 de março, Dia Mundial da Água, deveríamos estar imersos (bem apropriado para o dia) em profunda reflexão sobre o “estado das águas no planeta” e suas conexões com a continuidade da nossa vida, tal como a concebemos. No entanto, todas as nossas atenções, neste dia, estão voltadas para a luta contra o novo coronavírus (Covid-19) que assola os quatro continentes, com milhares de mortos, e que já isola mais de 1 bilhão de pessoas no planeta.
Hoje, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), duas em cada cinco pessoas não têm instalações básicas para se lavar as mãos. Ainda, conforme o Unicef, 40% da população mundial, ou 3 bilhões de pessoas, não têm lavatório com água e sabão em casa, e quase três quartos das pessoas nos países menos desenvolvidos não têm instalações básicas para lavar as mãos em casa.
Inacreditavelmente, o Unicef afirma ainda que 47% das escolas, que abrigam 900 milhões de crianças em idade escolar, não têm um lavatório adequado. Nos estabelecimentos de saúde de todo o mundo, 16% não tinham banheiros funcionais ou instalações para lavar as mãos nos pontos de atendimento onde os pacientes são tratados. Lavar as mãos com água e sabão é uma das práticas mais baratas e eficazes que você pode fazer para proteger você mesmo e os outros contra o coronavírus bem como contra muitas outras doenças infecciosas que ainda matam milhares. No entanto, para bilhões de pessoas no mundo, mesmo as medidas mais básicas estão simplesmente fora de alcance.
No Brasil, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), a média brasileira é de 83,5% da população servida por rede de água e apenas 52,4% têm o esgoto coletado, do qual somente 46% são tratados, conforme os dados divulgados no começo deste ano. Esses percentuais mostram o alerta para a impossibilidade de se cumprirem as metas de universalização do saneamento até 2033, conforme o Plano Nacional de Abastecimento (PlanSab), de 2013. De outro lado, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou estudo que prevê que, no Brasil, quatro em cada 10 litros de água são perdidos, quando os dez litros deveriam chegar à população. Conforme a confederação, 34 milhões de brasileiros não têm água encanada, e quase 40% dos recursos hídricos se perdem por desvios e infraestrutura deteriorada.
Os dados e números neste Dia Mundial da Água não são bons. Nem um pouco. E merecem uma profunda reflexão. Um relatório climático da ONU, divulgado neste mês de março, mostra que a mudança climática está tendo um efeito importante em todos os aspectos do meio ambiente, bem como na saúde e no bem-estar da população global. Mesmo que você esteja inserido na classe de pessoas que não acreditam nas mudanças climáticas, não importa muito. Você certamente será vitimado por ela, mesmo não acreditando. Há uma sinergia curiosa entre aqueles que não acreditam em mudança climática e os que negavam o poder devastador do coronavírus. Somam-se a esses os que acreditam que a Terra é plana. Há também aqueles que acham que a disponibilidade de água não está desaparecendo em muitas regiões ou, ainda, aqueles que professam que os desmatamentos não estão aumentando no Brasil e, por fim, os que dizem que tudo isso é teoria globalista e de dominação mundial. A diversidade de opiniões e falsas ideias parece ser proporcional à diversidade da vida no planeta, resguardados, naturalmente, a inépcia e a ausência de informações básicas.
O relatório da ONU documenta sinais físicos das mudanças climáticas – como aumento do calor da Terra e dos oceanos, aceleração da elevação do nível dos mares e derretimento do gelo – e os efeitos indiretos em desenvolvimento socioeconômico, saúde humana, migração e deslocamento, segurança alimentar e nos ecossistemas terrestre e marítimo.
Efetivamente, o que constatamos, sem muito esforço, é que o mundo está atualmente fora do caminho para limitar o aquecimento a 1,5 °C ou 2 °C, conforme exigido pelo Acordo de Paris, compromisso assumido pela comunidade internacional em 2015 para manter as temperaturas médias globais bem abaixo de 2 °C acima dos níveis pré-industriais.
Nós quebramos vários recordes de calor nos últimos anos e décadas. O ano de 2019 foi o segundo mais quente já registrado e 2010-2019 foi a década mais quente já registrada. Desde a década de 1980, cada década sucessiva tem sido mais quente do que qualquer década anterior desde 1850.
Mesmo diante de um quadro de incertezas, percebemos que há um entendimento crescente em toda a sociedade, da juventude ao setor financeiro, de que a mudança climática é o problema número um que a humanidade está enfrentando hoje.
No ano passado, várias regiões de alta latitude, incluindo Sibéria e Alasca, observaram altos níveis de focos de incêndio, assim como algumas partes do Ártico, onde anteriormente esse fenômeno era extremamente raro. A Indonésia e os países vizinhos tiveram a temporada de incêndios mais significativa desde 2015, e a atividade total de incêndios na América do Sul foi a mais alta desde 2010. Estranhamente, parece, às vezes, que titubeamos, avançando e recuando, como um ébrio que tenta se equilibrar.
Estes são tempos de grandes transformações, em tudo. As emissões de gases de efeito estufa continuaram a crescer nos últimos anos, levando ao aumento da temperatura dos oceanos, e fenômenos como aumento do nível dos mares, alteração das correntes oceânicas e mudanças dramáticas nos ecossistemas marinhos. Desnecessário dizer que a mudança no regime dos oceanos resultará, inevitavelmente, em mudanças radicais no clima pelo planeta. Os oceanos sofreram aumento da acidificação e desoxigenação, com impactos negativos na vida marinha e no bem-estar das pessoas que dependem dos ecossistemas oceânicos. Nos polos, o gelo marinho continua a declinar, e as geleiras encolheram mais uma vez, pelo 32º ano consecutivo.
No ano passado, o planeta experimentou eventos climáticos extremos, alguns dos quais sem precedentes em escala. Este ano o Brasil assistiu a tragédias com as chuvas na região Sudeste, sobretudo. Grande parte dessas tragéidas, importante dizer, deve-se à ausência de planejamento de crescimento das cidades, ocupações desordenadas e, sobretudo, desrespeito para com os rios (que foram encaixotados e/ou foram soterrados pelo avanço das cidades). Nos Estados Unidos, as perdas econômicas totais resultantes das inundações foram estimadas em cerca de 20 bilhões de dólares. No ano passado também tivemos um número acima da média de ciclones tropicais, com 72 no Hemisfério Norte e 27 no Hemisfério Sul. Alguns ciclones notavelmente destrutivos foram o Idai, que causou devastação generalizada em Moçambique e na costa leste da África; o Dorian, que atingiu as Bahamas e permaneceu quase parado por cerca de 24 horas; e o Hagibis, que causou graves inundações no Japão.
Fato é que a mudança climática está afetando a saúde da população global (independentemente do coronavírus ou de outras epidemias). Em 2019 temperaturas recordes provocaram mais de 100 mortes no Japão e 1.462 mortes na França. Os casos de dengue também aumentaram em 2019, devido às temperaturas mais altas, que facilitam a transmissão da doença por mosquitos. No Brasil, registrou-se o segundo maior número de mortes pela doença desde 1998, ano de início da série histórica. Dados do Ministério da Saúde apontam que, até dezembro do ano passado já haviam sido confirmadas 754 mortes por dengue no Brasil.
Após anos de declínio constante, a fome está novamente em ascensão, impulsionada por mudanças climáticas e eventos climáticos extremos. Basta olharmos os números recentes: mais de 820 milhões de pessoas no pleneta foram afetadas pela fome no ano de 2018. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima ser possível eliminar a fome no mundo até 2030 com investimento de 239 bilhões de euros por ano. O brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, disse que “em 2030 teremos mais de 650 milhões de pessoas sofrendo com a fome”, ao apresentar, em Roma, o relatório do Programa Alimentar Mundial e do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola. O relatório estima que a eliminação da fome crônica “vai precisar de investimento total de cerca de US$ 267 bilhões (cerca de 239 bilhões de euros) por ano, durante os próximos 15 anos, ou seja: US$ 160 (143 euros) por ano e por pessoa que vive em situação de pobreza.”Dado que isso é mais ou menos o equivalente a 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, penso que o preço a pagar para erradicar a fome crônica é relativamente baixo”, disse o diretor da FAO.
Bem, agora a surpresa: em 2019 os países do mundo gastaram US$ 1,73 trilhão de dólares com armamentos! Ou seja, 4 vezes o valor anual para acabar com a fome no mundo! É preciso mesmo repensarmos nossas escolhas como civilização.
Há hoje um impacto profundo em curso e que passa despercebido por muitos. Os países do Chifre da África foram particularmente afetados em 2019, quando a população sofreu com eventos climáticos extremos, deslocamento, conflito e violência. A região registrou secas, chuvas extraordinariamente fortes no final do ano passado e uma das piores pragas de gafanhotos dos últimos 25 anos.
Em todo o mundo, cerca de 6,7 milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas devido a riscos naturais – em particular tempestades e inundações, como os muitos ciclones devastadores e inundações no Irã, nas Filipinas e na Etiópia. No Brasil, estamos assistindo ao aumento da desertificação em estados como Minas Gerais, Espírito Santo e os, já clássicos, estados nordestinos.
Sem a menor sombra de dúvida, o planeta precisa hoje, mais do que nunca, de planos climáticos nacionais mais ambiciosos para mantermos o aquecimento global 1,5 grau acima dos níveis pré-industriais. Esses planos deveriam ser propostos também pelos estados e cidades, criando um efeito de replicabilidade e capilaridade. Também precisamos de estratégias para atingir zero emissões líquidas até 2050, com um programa abrangente de apoio à adaptação e resiliência ao clima e, naturalmente, a ampliação do financiamento para uma economia verde sustentável.
A crescente disseminação do coronavírus COVID-19, uma tragédia humana, soma-se aos efeitos das mudanças climáticas e amplia nossos desafios para este ano e para os que se sucederão. Fato é que não combateremos as mudanças climáticas com os efeitos “paralisantes” do vírus. Não podemos dispersar nosso foco na luta contra o vírus sem nos esquecermos de derrotar a fome, as mudanças climáticas, a desigualdade e os muitos outros problemas que o mundo está enfrentando e que tendem, na atual conjuntura, a aumentar nossos dilemas e desafios. Fato é que em 2020 estamos percebendo, com clareza, que tudo mudou, ainda que não tenhamos visto, e que nada será como antes na história da nossa civilização.
Luiz Oliveira – Filósofo, presidente e fundador do Instituto Espinhaço
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